domingo, 20 de julho de 2008
Quem precisa de matemática imprecisa?
Ormezinda Maria Ribeiro-Aya é Doutora em Lingüística e Língua Portuguesa pela Unesp.
aya_ribeiro@yahoo.com.br
Era desprovida de tamanho, mas gostava de estudar. Tinha título de doutora e aparência de menina curiosa, sempre disposta a aprender.Há anos alimentava um sonho: o de ter na cidade que escolheu para viver uma universidade pública na qual pudesse orientar as pesquisas de alunos ávidos pelas letras e pela educação, sem que precisassem viajar tanto como ela fez para continuar estudando. Esperou vinte anos por isso. Não só esperou, mas se empenhou em tornar esse sonho realidade, como uma mãe que gesta o filho da maturidade. Finalmente o sonho estava preste a se concretizar: o Presidente assinou. A Universidade Pública era já um fato. Faltava o curso dos seus sonhos, que ela fez materializar diante da tela de seu computador e nas inúmeras páginas impressas, adicionando ali as expectativas de mudança dos rumos da educação e das concepções curriculares. Chegou o concurso. Ela afastou-se da comissão organizadora. Não queria privilégios. Apenas o justo direito de concorrer, de forma ética e transparente, com tantas outras pessoas também merecedoras desse respeito. Teria que elaborar um texto e ministrar uma aula sobre um tema sorteado, escolhido dentro do projeto que ela redigira letra por letra, dando corpo a sua maneira de pensar a educação de forma integrada. Seu currículo também seria analisado por uma banca composta por membros os quais ela não conhecia. Engoliu em seco quando, já no início da aula, uma das integrantes da banca, pós-doutora, descida do Olimpo, estirou-se na cadeira, feito uma colegial, dirigiu à candidata um olhar de soslaio, sacou de sua bolsa uma lixa de unhas, e começou seu displicente trabalho. Deve ser uma estratégia de avaliação, pensou. Certamente ela esperava ver qual seria a sua reação, como se comportaria diante de uma classe de “verdade”. Passado esse impacto inicial, que não tirou sua concentração, buscou interagir com “a turma”. Afinal, o tema da aula era: “A diversidade de saberes e as interações comunicativas”. Enquanto manuseava o mouse e explorava as imagens e textos que projetava na parede, procurava um contato visual com aqueles “alunos” a sua frente. Foi acostumada a olhar sempre nos olhos de seus interlocutores. Um deles abaixava os olhos sempre que o olhar da candidata buscava o dele. E, desde o início, incessantemente, olhava o relógio, como aqueles alunos que não agüentam mais a aula e não vêem a hora de o sinal tocar para se encontrar com os demais coleguinhas no recreio. Deve ser para controlar os 50 minutos, ponderou naquele momento. Só uma das “alunas da frente” a olhava nos olhos. Diferentemente da “escola real”, as outras alunas, da “turma do fundão”, é que pareciam estar encantadas com o desempenho da pleiteante à professora. Sorviam cada palavra, admiravam cada projeção. Sorriam com os olhos e estimulavam-na a continuar falando do seu projeto de educação. Naquele canto da sala, de fato, era possível perceber o respeito pelas diversidades de saberes e as interações saindo do projeto, ganhando vida. Do outro lado não. Saiu da sala com um misto de contentamento e de desencanto. Seria assim mesmo uma aula para selecionar professores para uma universidade pública que pretende formar professores? Aquela banca, ali, representava, infelizmente, a realidade a qual ela não tardaria a enxergar: a incoerência que assombra os mais bem intencionados projetos de mudança na educação. Os soberanos que são chamados a julgar e a decidir o futuro de pessoas e instituições não conhecem a instituição, nunca viram o seu projeto, prestam um serviço casual e vão-se embora para a sua origem: alguns voltam para o Olimpo, esconjurando a cidade, a casa e até a água que beberam, outros retornam para confirmar sua soberania. Ela foi aprovada, classificada em segundo lugar, por uma diferença centesimal: 0, 0866666666...Seu currículo de 70 páginas publicadas, devidamente comprovado nas quase duas mil laudas de documentos não foi suficiente para definir a classificação em outra ordem: a primeira classificada apresentou apenas 4 páginas e conseguiu suplantá-la, mesmo sem ser doutora. Aos desavisados pode parecer coisa de gênio! Essa seria uma das situações que levam a crer que a matemática não é uma ciência exata, mas interpretativa. E que, nesse caso, mais é menos. Não foi considerada apta para atuar de imediato no projeto que ela própria idealizou e sobre o qual se debruçou durante dias e madrugadas. Restou-lhe um consolo: acreditar que a limitação não era dela. Também não foi a única: outras colegas, de reconhecidas competências, com currículos bem construídos e índoles impecáveis não foram sequer aprovadas. Dentre essas, uma grande educadora, escritora renomada e palestrante convidada a abrir e a fechar grandes eventos das Letras, neste país e no exterior, também foi julgada inapta a fazer parte desse círculo hermético. Sorte dela que não terá que fazer parte de nenhuma igrejinha, tendo sua criatividade tolhida e nem verá sua inestimável contribuição ignorada pelos adeptos de outras “religiões” mais conservadoras!
Mas o sonho não morreu! Apenas foi transformado no desejo de que os soberanos se coloquem no mesmo plano dos idealistas, para que ainda se possa acreditar na educação e nas instituições públicas. E que as metáforas da educação se distanciem do que já está se tornando lugar comum no reino de Lirabs, com a aquiescência dos “poderosos” das sete colinas, na corte privilegiada dos amigos do Rei Heitor…
sábado, 19 de julho de 2008
Depoimento
“É erro do indivíduo crer que é um ser isolado; em cada pulsação de nossa vida bate, assim, psíquica, como fisicamente, a vida em comunidade. “
(PAULO NATORP 1854-1924)
Devagar se vai ao longe. Foi com esse provérbio que iniciei minha primeira aula no segundo ano do Curso de Magistério em 1997, quando tomei posse como professora de Língua Portuguesa e Literatura na Escola Estadual “Aurélio Luiz da Costa”. Diante do olhar assustado de 50 futuras professoras, minhas alunas na disciplina Língua Portuguesa, incitei-as a escrever uma narrativa que fosse adequada a esse dito.
Lembro-me com um misto de saudade e de satisfação que essa foi a minha aula inaugural em uma instituição de educação que me recebeu com carinho e afetividade, e que se impregnou em mim, bem mais do que muitos dos estudos que fiz para ser e continuar sendo professora. Dois anos depois fui convidada para ser a madrinha da última turma de magistério formada por essa escola.
Sempre acreditei que a escola não é o lugar do ensino, mas o lugar privilegiado das trocas, pois ensinar não é meramente passar conhecimentos, mas mediar construções de aprendizagem nas e pelas relações. Cada um tem o seu tempo de aprendizagem. E como professora, numa época em que os conflitos e ideais profissionais se chocavam com políticas educacionais nem sempre pautadas nesses ideais, encontrei na escola “Aurélio” um espaço de liberdade, no qual pude atuar profissionalmente colocando em prática tudo aquilo que acreditei como profissional da educação.
Em minhas aulas, na Escola “Aurélio”, pude exercer não só o magistério de Língua Portuguesa e Literatura, para o qual foi concursada, e, por uma feliz opção, nessa instituição, lotada. Conscientemente, e com o apoio das equipes dirigentes, com as quais trabalhei no período de 1997 a 2002, pude tratar das questões da Língua Portuguesa como exercício de cidadania, de profissionalismo, de respeito ao educando e às suas potencialidades, na busca de sua criatividade encoberta.
Os alunos das diversas turmas que tive, durante meu tempo como professora nessa escola, podem, de fato provar a veracidade da cultura popular. Muitos deles estão cursando a Universidade, quase a maioria está exercendo uma profissão digna e contribuindo para a sociedade em que vivem. Como ecoa o hino da Escola, cuja letra foi composta pelos próprios alunos, durante nossas aulas de português, nessa escola formam-se alguns gênios, mas muitos e bons cidadãos.
Confesso que sinto um orgulho inenarrável, ou difícil de exprimir por palavras, em ter feito parte do corpo docente dessa escola, da qual sempre me refiro como integrante, ainda, apesar de estar afastada temporariamente, assim quero crer.
A verdadeira, e mais fecunda formação é adquirida quando o sujeito assimila os bens culturais mediante um esforço ativo, no qual toma clara consciência dos objetivos e resultados de sua ação, quando realiza um esforço por si mesmo, destinado à produção seja espiritual ou manual. Nessa escola pude viver de fato essa concepção, pois me senti aceita e integrada ao grupo. E isso fez a diferença em minha ação: pude escolher entre ser uma ministradora de aulas, aquela que cumpre os programas e calendários exigidos pela direção, ou entre ser uma educadora com liberdade e autonomia para exercer a profissão. Escolhi a segunda, porque encontrei sintonia no espírito dos gestores dessa escola.
Nessa escolha, apoiei-me em Sartre, quando esse filósofo, em sua Pedagogia Existencialista, dizia que a existência ou vida humana é, em primeiro lugar, atividade, ação. Existir é escolher entre diferentes propósitos ou objetivos; é ir-se fazendo o homem a si mesmo. A existência não é um estado, mas um permanente vir-a-ser.
O homem é livre para escolher, mas dentro de determinadas circunstâncias. E mais: deve decidir-se a fazer algo em cada instante da vida, e decidir-se é limitar-se.
A liberdade é pressuposto ontológico de seu crescimento integral, o qual há de ver-se à luz de seu destino pessoal. O educando é o criador de sua essência, tem de incumbir-se de si mesmo. O educador, por seu turno, é apenas um suscitador do eu: quem desperta o aluno para a consciência da responsabilidade, da finitude, da morte, mediante uma sustentada preocupação consigo mesmo. O educador não modela a criança e o jovem, pois não pode decidir sua essência; mas terá de incitá-lo em benefício de sua autenticidade e originalidade pessoais.
Mas, para isso, é preciso um ambiente educacional no qual, pela satisfação de ser e de realizar-se, esteja garantida aos parceiros da educação a condição e a liberdade de escolher. A realização da pessoa é mais fácil na confiança, na estima, na segurança de sentir aceito e compreendido.
Educar na liberdade supõe novas estruturas educacionais, inter-relações pessoais mais ricas, formas inovadoras de percepção, participação e expressão. São essas estruturas que constituem a meta fundamental de uma educação cidadã.
Esse espaço encontrei na escola “Aurélio”. Tive a liberdade de escolher entre continuar a repetir os velhos modelos, a reforçar a submissão, a memorização e o treinamento, ou optar por conduzir meus alunos à descoberta do conhecimento, a partir da interação e da comunicação, tornando- os livres do jugo da imposição, da massificação e levando-os a se tornar senhores de seu próprio conhecimento, agentes e produtores de seu mundo e não meros repetidores de ações preestabelecidas.
Nessa escola pude buscar, acima de tudo, novos conceitos sobre educação, sobre cultura, sobre o que é ser educador, sobre o que é ser educando, saindo do preciosismo das teorias, para a boniteza da prática vivida e sentida, em co-participação ...
Nessa escola pude retirar os entraves para a expressão, para a criatividade e para a criticidade. E no meu cotidiano como professora constatei que o conhecimento é a própria arquitetura do pensamento que é vivenciado ao ser construído e é construído ao ser vivenciado.
Todavia, hoje, ao escrever minhas memórias sobre o tempo que partilhei com outros colegas o espaço de trocas da Escola “Aurélio”, faço uma constatação, óbvia, mas necessária: a educação é um processo contínuo e não pode ser isolado, é como a ciranda de dominós, uma peça atinge a outra, que atinge a outra que atinge a outra, até atingir o objeto final. Eu não teria vivido essa experiência significativa só com meus ideais, não tivesse encontrado um espaço propício e um grupo de colegas, com os quais pudesse sentir a liberdade de exercer meu ideal de educadora, conservando minha alteridade, num coletivo que me incluiu e não me inibiu.
Fora do espaço da Escola “Aurélio”, continuo acreditando que a educação só é possível na liberdade. Qualquer ambiente educacional tem que propiciar as condições que garantam a tomada de decisão por parte do indivíduo, pois só na livre opção pode ocorrer a responsabilidade e o compromisso. Educar na liberdade propicia situações imprevistas que desconcertam tanto os educadores como os próprios educandos. E educar na liberdade supõe uma mudança de atitude que implica um novo relacionamento entre educadores e educandos. Se a liberdade é uma forma natural e intrínseca da atividade humana, a confiança mútua entre educadores e educandos é condição para o êxito do processo educativo. Por essa razão pude ser o que acredito e o que prego.
E posso afirmar com toda a segurança, que o que ora escrevo não é um mero discurso, mas a confirmação do que fizeram em mim os anos de convivência com alunos, colegas e gestores dessa escola.
Professora Aya Ribeiro
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